18/10/2011

HISTORIA - MONTEIRO LOBATO - CARTAS E PENSAMENTOS.

Certamente uma das personalidades mais aplaudidas pelo mundo, grande contribuidor da literatura e também responsável pelo desenvolvimento do Brasil. Este homem deve ser admirado por gerações e gerações, inteligente traduz em suas obras os desejos de um povo.  


"A Lobato deve muito o Brasil. Em primeiro lugar o exemplo magnífico e raro do intelectual que não se vende e não se aluga, não se coloca a serviço dos poderosos ou dos sabidos. Depois, foi ele um homem de ação e um descobridor. Devem-se a ele a campanha do livro e a campanha do petróleo. Foi ele o criador da nossa literatura infantil" 
Oswald de Andrade



 Carta a Getúlio
São Paulo, 20 de janeiro de 1935

Dr. Getúlio Vargas

Por intermédio do meu amigo Rônald de Carvalho, procurei no dia 15 do corrente, fazer chegar ao seu conhecimento uma exposição confidencial sobre o caso do petróleo, estou na incerteza se esse escrito chegou a destino. Talvez se perdesse no desastre do dia 20. E como se trata de documento de muita importância pelas revelações que faz, seria de toda conveniência que eu fosse informado a respeito. Nele denuncio as manobras da Standard Oil para senhorear-se das nossas melhores terras potencialmente petrolíferas, confissão feita em carta pelo próprio diretor dos serviços geológicos da Standard Oil of Argentina, que é o tentáculo do polvo que manipula o brasil. E isso com a cooperação efetiva do sr. Victor Oppenheim e Mark Malamphy, elementos seus que essa companhia insinuou ou no Serviço Geológico e agora dirigem tudo lá, sob o olho palerma e inocentíssimo do dr. Fleuri da Rocha. É de tal valor a confissão, que se eu der a público com os respectivos comentários o público ficará seriamente abalado.

Acabo agora de obter mai uma prova da duplicidade desse Oppenheim, cornaca do Fleuri. Em comunicação reservada que ele enviou para a Argentina ele diz justamente o contrário, quanto às possibilidades petrolíferas do Sul do Brasil, do que faz aqui o Fleuri pelos jornais, com o objetivo de embaraçar a marcha dos trabalhos da Companhia Petróleos.

O assunto é extremamente sério e faz jus ao exame sereno do Presidente da República, pois que as nossas melhores jazidas de minérios já caíram em mãos estrangeiras e no passo em que as coisas vão o mesmo se dará com as terras potencialmente petrolíferas. E já hoje ninguém poderá negar isso visto que tenho uma carta em que o chefe dos serviços geológicos da Standard ingenuamente confessa tudo, e declara que a intenção dessa companhia é manter o Brasil em estado de "escravização petrolífera".

Aproveito o ensejo para lembrar que ainda não recebi os papéis, ou estudos preliminares do serviço que V. Excia. Tinha em vista organizar, por ocasião do encontro que tivemos em fins do ano passado, no Palácio Guanabara.

Respeitosamente,

J. B. Monteiro Lobato





 São Paulo, 19 de agosto de 1935
Dr. Getúlio Vargas
Rio de Janeiro
Excelentíssimo Senhor:
Conforme previ na última audiência que me foi concedida a 15 do corrente, há alguém interessado em embaraçar a ação da Cia Petróleos do Brasil, dificultando a obtenção da autorização para que ela siga seu curso natural, fora das restrições do Decreto nº 20.799, que, em requerimento ao Ministério da Agricultura, foi pedida. E como V. Excia., me autorizou, neste caso, a recorrer diretamente a V. Excia., como guardião que é dos verdadeiros interesses nacionais, sou forçado a lançar mão desse recurso.
Negam-nos a autorização pedida, dificultando, retardando, protelando o necessário decreto. Isso vem impossibilitar a atividade da Cia Petróleos do Brasil. Os homens contratados à custa de tanto sacrifício monetário para procederem em nosso território quatro meses de provas, nada poderão fazer já que a companhia que os contratou não pode fazer contratos de opção nos terrenos a serem examinados. E desse modo terão de regressar para a América do Norte sem que o Brasil se beneficie das vantagens incomensuráveis da série de provas previstas e para as quais a nossa empresa se formou.
Isso constitui um crime imperdoável, além de denunciar de modo esmagador que há gente paga por estrangeiros para que o Brasil não tenha nunca o seu petróleo. Em vez de, pelas funções de seus cargos, esses homens tudo fazerem para que tenhamos petróleo, quanto antes, tudo fazem para que não o tenhamos nunca. O caso é, pois, desses que pede a imediata intervenção de homens que, como V. Excia., só têm em vista os altos interesses do País.
 "Se Chico Xavier produziu tudo aquilo por conta própria, então ele merece ocupar quantas cadeiras quiser na Academia Brasileira de Letras." [ Monteiro  Lobato ]


TEIXEIRA, Anísio. Carta a Monteiro Lobato, Bahia, 06 jun. 1945. 
Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 28.06.22
Carta publicada no livro Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / CPDOC, 1986. p.97-98.
Bahia, 6.6.45
Lobato

"Se algum convite já me pôs água na boca, este foi o seu... E olha que já não tenho apetite para coisa alguma! E a lembrança de também escrever a Emilinha foi das mais eficazes. Tenho, temos uma velha briga por causa de um cachorro - Rupee - cachorro que eu acho uma flor e ela... a pior das nuisances ... Com a sua carta, logo decidiu matar o cachorro e obter a ruptura definitiva. Chegou a redigir resposta telegráfica ao seu cartão: "Matei cachorro segue o Anísio". Mas nem a morte do meu Rupee me poderá levar agora a São Paulo. De modo que tratei de dissuadir Emilinha do seu torvo propósito.
Ninguém melhor do que você pode julgar a minha situação. Muito pouca coisa funciona no Brasil e no Norte não funciona coisa nenhuma. De comerciante - horrorizado com essa história de comprar aqui por menos e vender ali por mais - meti-me a industrial e afundei-me em uma série de minas de manganês. A minha experiência foi 100% baiana. O problema tinha seus elementos muito claros: tinha que existir minério, depois tinha que extraí-lo, transportá-lo a gasolina até a estrada, aí ter transporte até o porto, ter compradores e vapores. Tudo simplicíssimo: minério, gasolina, transporte ferroviário, porto, comprador, navio... Pois em cinco anos, só raramente esses elementos coincidiram. Quando tinha minério, não tinha transporte. Quando tinha transporte, não tinha navio. E algumas vezes, quando tinha transporte e navio, não tinha minério... Foi um gangorrear sem fim. E agora - porque resolvi os problemas que me competiam - sou um homem que tem minério, tem preço e tem comprador, mas que não tem transporte... Como sou muito Sancho não devo a ninguém, mas estou com um pesadíssimo negócio nas mãos sem saber como sair... Sou hoje um homem amarrado a mais de 30 mil toneladas de pedras espalhadas por minas, estações ferroviárias e dois portos baianos. Como gostaria de "liquidar" tudo isto e ajudar vocês a fazer livros - coisa, pelo menos, muito mais leve que manganês. No Brasil tudo é tão tênue que só se deve tentar o leve. Isto do pesado é o diabo...
E logo agora que o Getúlio pôs o "faz-de-conta" a funcionar e nos deu essa "liberdade" tão "país-das-maravilhas". A gente sabe que isso vai desaparecer de uma hora para outra, que basta, como faria a Emília, fechar os olhos com força, mas que delícia seria conversar um pouco entre essas fadas: liberdade de pensamento, liberdade de crítica, democracia, independência individual...
A sua carta, Lobato, ficará aqui a me espetar as saudades. Racionalmente, não posso sair agora da Bahia. Mas quem disse que somos racionais? E com todos esses pós de pirlimpimpins getulianos, não é mesmo que se tem o direito a algumas maluquices?
Seriamente, precisava de acertar o pensamento com você. Ando tremendamente gloomy. Leu, por acaso, um telegrama de Ghandi a Mrs. Roosevelt por ocasião da morte de seu marido? Era uma coisa assim: "Condolências pela morte de seu marido. Parabéns porque esse homem de paz não assistirá o assassinato da paz". The murder of peace... Será mesmo que os homens a assassinarão pela segunda vez em cinqüenta anos? Este o meu medo, Lobato, medo tão grande que me anda tirando o gosto de viver. Todas as vitórias militares da terra só valem, só valeriam se fosse para que a paz vivesse. Todos nós que vimos e sentimos a catástrofe chegar, imaginamos que os homens aprenderiam afinal ao tremendo preço dessa catástrofe a "enxergar". E enxergando, evitassem mais singelamente e mais humanamente o perigo de nova catástrofe. Pois não é que continuam tão cegos, tão estúpidos, tão estouvados quanto antes! Estará você vendo melhor as coisas? Precisava muitíssimo de ir a São Paulo para conversar, para examinar com você tudo isto. Não será já o começo de uma racionalização para poder viajar?
Lembre-me à d. Purezinha, à Rute, ao Jurandir e Marta e Joyce e creia-me seu muito saudoso 
Anísio"


TEIXEIRA, Anísio. Carta a Monteiro Lobato, [a bordo do Queen Elizabeth], 29 jan.1947.
Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 28.06.22. 
Carta publicada no livro Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / CPDOC, 1986. p.104-107.

Janeiro, 29, 1947
Meu grande Lobato
Estou lhe escrevendo do Queen Elizabeth, de viagem para New York. Pouco antes de deixar Paris, recebi sua carta e posso lhe dizer que você, mais uma vez, determinou a direção da minha vida. Estava em pleno labor deliberativo a respeito do meu trabalho na UNESCO e, confesso, inclinado a me encaramujar na Bahia cuidando da criação de quatro Teixeirinhas. Sua carta sacudiu-me como uma rajada de vento e resolvi ficar. Esta viagem ainda é resultado do propósito de tudo abandonar. Era a minha viagem de volta: a primeira parte da viagem de volta. De New York tomaria um outro barco para a Bahia, sem querer passar pelo Rio. Não pude cancelá-la, mas, vou até New York. Volto dali para Paris e para a UNESCO. E tudo isto veio muito de sua carta. O seu entusiasmo me pegou. É espantoso que você em Buenos Aires veja a UNESCO melhor do que eu! Lendo e relendo a sua carta, comparo-a às cartas dos namorados sobre casamento. A vida conjugal, entretanto, é tão diferente! Dá-se um pouco o mesmo com a UNESCO. Amar a UNESCO é uma coisa e casar-se com ela outra. Com sete meses de vida marital, andava triste e desconsolado. Nada me fazia crer na UNESCO dos nossos sonhos. Vem você daí, de longe, e me diz tais coisas que não tenho jeito senão reconsiderar. Os sonhos não se realizam sem que primeiro se armem os andaimes. E uma construção em andaimes pede imaginação e amor para ser compreendida. Vou voltar à UNESCO para uma nova experiência e, no curso dessa experiência, conto com você em Paris.
A UNESCO
é, ao mesmo tempo, uma obra tardia e uma obra prematura. É esta a sua contradição essencial. Tardia porque, de muito, o mundo pedia um centro intelectual para unificação de sua experiência e direção do seu progresso. A UNESCO devia ter começado a existir desde o dia em que Galileu revelou àqueles bobalhões medievais o método experimental. Criado o método científico, a UNESCO era uma necessidade, para aplicá-lo, para dirigir os resultados da sua aplicação à vida. Em vez da UNESCO, tivemos, porém, uma ciência e uma inteligência nacionais e nacionalistas até a apoplexia finalhitleriana. Então, os homens acordaram para a UNESCO. Dentro do pesadelo da catástrofe revelaram-se generosos e lúcidos. Mas o pesadelo passou. O mundo sobreviveu à débâcle, graças a uma UNESCO improvisada na América com os cientistas de todo o mundo, uma UNESCO, que produziu o fogo atômico e armou o homem com o poder e... o dever de ser sábia e ajuizada. Era natural que essa UNESCO se constituísse devidamente e tomasse de vez a direção do progresso humano. O sonho dos Wells e Lobatos estaria realizado. O mundo teria afinal sua máquina de pensar. Mas... com a vitória - que ironia! - os homens voltaram às suas divisões antigas. E dentro dessas divisões a UNESCO, que pretenderam criar, é algo de terrivelmente prematuro. Os governos puseram-na para um lado e o Huxley para outro. Mando-lhe a introdução do Huxley à obra da UNESCO. É esplêndida, mas aquilo é pensamento pessoal do Huxley, e os homens dos governos, os que mandam, não o aprovaram. Consentiram na publicação como contribuição pessoal doHuxley e não do diretor-geral da UNESCO. Se Wells ainda estivesse vivo creio que estigmatizaria a pequenina UNESCO que estamos construindo.
Mas que quer você? São assim os homens e talvez só com a terceira catástrofe venham a aprender a viver uns com os outros. É horrível pensar estas coisas e ainda mais horrível cooperar em obras frustras. Chocar aqui na UNESCO o próximo cataclisma é o último dos meus desejos. A sua carta, entretanto, fez-me reconsiderar tudo isto. Vou ficar mais algum tempo. Pensar é uma coisa, realizar um pensamento outra. Nada exige tanta paciência e tanta "ciência do possível". Vou ver se não sou eu que estou errado com a minha impaciência wellsiana. E se você vem a Paris, juntos discutiremos tudo isto. A UNESCO está a constituir-se definitivamente. Os meus companheiros insistiram por que ficasse. O Huxley declarou-me que desejava muitoconservar-me e sua carta acabou o trabalho. Deixo uma vida privada que começava a ser interessante e vou ser funcionário intelectual do que você chama o cérebro do mundo. Serei um pouco office-boy desse cérebro se ele chegar a ser mesmo cérebro. A minha posição na UNESCO é de conselheiro com o ordenado de aproximadamente duas mil libras. Isto, em França, reduz-se a 80 mil francos por mês, o que é muito pouco. Com o câmbio artificial da França sofro uma redução de 50% no meu salário. No Brasil, vendendo minhas máquinas teria muito mais. Pouco importa. Não quero decepcionar os que acreditam em mim e não quero também me decepcionar. Somos de um modo ou de outro, homens públicos e o nosso dever é s’engager. Jem’engage...
Em New York, para onde sigo com Emilinha, que veio encontrar-se comigo em Paris, vou estar com o Jaime a acertar os meus negócios da Bahia.Emilinha seguirá para o Brasil, para dali voltar com a meninada, e eu irei recomeçar, em Paris, a experiência internacional.
Se você estiver no propósito de vir, poderá fazê-lo logo, ou poderá esperar a Conferência Geral da UNESCO, em novembro ou dezembro no México - ,juntos debateríamos a UNESCO e você viria comigo para Paris se a experiência ainda tivesse interesse... Este ano de 47 parece-me que será o ano de amadurecimento da crise do mundo. O tratado de paz com a Alemanha marcará se vamos ter nova guerra ou se progrediremos em paz, isto é,unesquianamente. 1946 foi um ano de incertezas e indecisões. Mas por isso mesmo, deixou os problemas em aberto. Vamos sentir melhor as direções em 1947. Por isto mesmo, precisávamos nos encontrar este ano.
Não quero terminar esta, sem uma palavra por esse Queen Elisabeth que representa tão bem tudo que já é possível e tudo que se não quer fazer. O vapor é um grande hotel flutuante. Tem 14 decks. Estou a escrever-lhe do 12º, que é um salão com seis ou sete metros de altura e de uma beleza e elegância que não vi ainda em nenhum hotel. Estou no vapor desde às três da tarde. São 10:30h e não vi ainda o mar. E não sei se o verei. Também nos bons hotéis não se olha para a rua. Deixei Londres coberta de neve, com 17º F. abaixo do ponto de congelamento. A temperatura aqui no Atlântico é a mesma, senão mais baixa. O vapor está porém com a mais agradável das temperaturas. O homenzinho que Galileu criou vence o mar, o frio e a distância. Do telefone que tenho em minha cabine posso falar com qualquer ponto da terra, como também conversar com qualquer pessoa do hotel que é o navio.
Tão fácil generalizar isto! Mas os governos - os homens aos quais está confiada a direção do mundo - são homens municipais e só pensam em seus municípios que são hoje suas nações...
Entretanto, estamos muito mais preparados do que pensamos para a nova escala mundial. Não há um só povo contente com a escala municipal. Na Inglaterra há juízo, há esforço, há plano - mas a população está apática. Na França - não há nada disto e a apatia se fez pândega. Na Alemanha e Itália - um um semidesespero, senão completo desespero. Na Rússia - não se sabe. Nos Estados Unidos - uma próspera inconsciência. Na China - a guerra civil. No Oriente Próximo - fermentam forças obscuras. Na Índia - um colosso, tenta erguer-se em meio à solércia hábil dos ingleses. Na América do Sul -peroniza-se ou preparam-se novas peronizações. Na Europa Central - ensaiam-se democracias à maneira sul-americana. Tudo isso pedia um plano de conjunto que despertasse as energias de uma fé e um esforço comuns. A "escala mundial" traria isto, estou certo. Wells morreu descrente e nós... Será que nós também vamos morrer sem poder crer no óbvio, no razoável, no evidente? Só o evidente parece ser realmente invisível!
Bem, Lobato, já bati muito o meu incoercível papo. Escreva-me. Preciso de suas cartas e ainda mais preciso de vê-lo. De New York lhe mandarei o meu endereço. Devo estar em Paris no fim do próximo mês.
Lembre-nos a d. Purezinha e a Rute e creia no seu de todo coração 

Anísio

P. S. Quem sabe se você não poderia vir logo a Paris? Não há melhor ponto de observação e a França pode dar-nos as maiores surpresas.


São Paulo ... 1903

"Não és capaz, nunca, de adivinhar o que estou comendo. Estou comendo ... Tenho vergonha de dizer. 
Estou comendo um companheiro daquilo que alimentava S. João no deserto: içá torrado! Sabe, Rangel, que o içá torrado é o que no Olimpo grego tinha o nome de ambrosia? Está diante de mim uma latinha de içás torrados que me mandam de Taubaté. Nós, taubateanos, somos comedores de içás. Como é bom, Rangel! Prova mais a existência do Bom Deus do que todos os argumentos do Porfírio Aguiar. Só um ser Onipotente e Onisciente poderia criar semelhante petisco!"



Taubaté, 28.12.1903
Rangel:

"Escrevo ao pingar duma chuva miúda e sem fim que nos alaga há dois dias. As ruas são passagens de lama bem amassadinha pelas rodas dos carros e patas dos animais. Sair é um impossível, e chega a ser rasgo de ousadia pôr o nariz fora da janela. Estamos encarcerados numa prisão de fios de chuva _ coisa mais impressionante que grades de ferro. Leio, leio interminavelmente. Meus olhos já estão cansados."


Taubaté, 4 de "Bruno"de 1904
Rangel:

"Tua carta é um atestado da tua doença: literatura errada. Julgas que para ser um homem de letras vitorioso faz-se mister uma obsessão constante, uma consciente martelação na mesma idéia - e a mim a coisa me parece diferente. Tenho que o bom é que as aquisições sejam conscientes, num processo de sedimentação geológica. Qualquer coisa que cresça por si, como a árvore, apenas arrastada por aquilo que Aristóteles chamava entelequia _ e que em você é o rangelismo e em mim lobatismo. Deixa-te em paz, homem, não tortures assim o teu pobre cérebro." ( ...)


Taubaté 2.6.1904

"Estou prestes a fechar o meu curso. Entro na "vida prática" em dezembro e creio que realizarei o meu sonho: ser fazendeiro. A minha vida ideal ( isto é, de idéias) está a pingar o ponto final. Vou morrer _ vai morrer este Lobato das cartas. E nascerá um que te fale em milho e porcos, e te dê receita para acabar com o piolho das galinhas.
Está um frio de fim de vida. Meus dedos enregelam. Vou sair, andar, tomar sol. Adeus." Lobato

S. Paulo, 15.11.1904
Rangel:


"É cheio do passado que te escrevo. Imagina que fui ao Rink (coisa que não conheces: patinação) e lá encontrei numa roda de quatro a moça mais bela que a Natureza ainda produziu. Bela, fina, elegante... Estes adjetivos já não dizem nada por causa dos abusos do Macuco. Sabe lá o que é o belo, Rangel? É o que alcança uma harmonia de formas absolutamente de acordo com nosso desejo. Se um mínimo senão na asa de um nariz rompe de leve essa harmonia, a criatura pode ser linda, bonita, encantadora - mas bela não é. Pois aquela moça era bela, Rangel. Chamava-se nos meus 14 anos, belita, Isabelita - Isabel. Foi o meu primeiro amor, em Taubaté. Mas falemos em coisas profanas. Li o teu último artigo... Nunca viste reprodução dum quadro de Gleyre, Ilusões Perdidas? Pois o teu artigo me deu a impressão do quadro de Gleyre posto em palavras. Num cais melancólico barcos saem; e um barco chega, trazendo à proa um velho com um braço pendido largadamente sobre uma lira - uma figura que a gente vê e nunca mais esquece (se há por aí os Ensaios da Crítica e História do Taine, lê o capítulo sobre Gleyre). O teu artigo me evocou a barca do velho. Em que estado voltaremos, Rangel, desta nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho Gleyre? Cansados, rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca - e não ficou nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de velas novas e arrogantes, atadas ao mastro da nossa petulância. São as nossas ilusões. Que lhes acontecerá? " (...)Você me pede um conselho e atrevidamente eu dou o Grande Conselho: seja você mesmo, porque ou somos nós mesmos ou não somos coisa nenhuma. E para ser si mesmo é preciso um trabalho de mouro e uma vigilância incessante na defesa, porque tudo conspira para que sejamos meros números, carneiros de vários rebanhos - os rebanhos políticos, religiosos, estéticos. Há no mundo ódio à exceção - e ser si mesmo é ser exceção.


Taubaté, 30.12.1904
Rangel:

"Aqui no exílio a madorra é um mal ambiente que derruba até os mais fortes. Exílio, Rangel, pura verdade! Saltar da libérrima vida estudantina de S. Paulo e cair neste convencionalismo de aldeia, com trabalhos forçados... Sinto-me rodeado de conspiradores; todos tramam o meu achatamento. Tudo quanto mais prezávamos _ o nosso individualismo, etc, é crime de lesa-aldeia, de que o vigário, os parentes e as mais "pessoas gradas"nos querem curar. O ideal é fazer de nós mais uma "pessoa grada", mais um "cidadão prestante". É arredondar-nos como um pedregulho, lixar-nos todas as arestas _ as nossas queridas arestas! Um homem aqui só fica bem "grado"quando se confunde com todos os outros e é irmão do Santíssimo Sacramento. (...)
Logo que cheguei ( que cheguei "formado"!) mimosearam-me com uma manifestação; foguetes (Taubaté não faz nada sem foguetes), a banda de música, molecada atrás e oito discursos, nos quais se falou em "raro brilhantismo", "um dos mais", "as venerandas arcadas"e outras cacuquices que tive de aguentar de pé firme em casa de meu avô. Eu percebia o jogo: a manifestação era mais dirigida a ele do que a mim, porque ele é um grande visconde e eu não passo dum simples "neto de visconde". (...)
Não imaginas a estranheza da minha emoção quando estourou lá longe o primeiro foguete e alguém ao meu lado disse: "É a manifestação que vem vindo." Um foguete soltado por minha causa..." (...) Do teu desolado Lobato



S. Paulo, Véspera de S. João, 1948

Rangel:

( ...) 
Tive a 21 de abril um "espasmo vascular", perturbação no cérebro da qual a gente sai sempre seriamente lesado de uma ou outra maneira. Depois de 3 horas de inconsciência voltei a mim, mas lesado. A principal lesão foi na vista que no começo me impedia de ler sequer uma frase. As outras perturbações ando agora eu a percebê-las: lerdeza mental, fraqueza de memória e outras "diminuições". Desci uns pontos.
Não é impunemente que chegamos aos 66 anos de idade.
O que eu tive foi uma demonstração convincente que estou próximo do fim - foi um aviso - um preparativo.
E de agora por diante o que tenho a fazer é arrumar a quitanda para a "grande viagem", coisa que para mim Perdeu a importância depois que aceitei a sobrevivência. (...) Estou com uma curiosidade imensa de mergulhar no Além. (...) Adeus, Rangel! Nossa viagem a dois está chegando ao fim. Continuaremos no Além? Tenho planos logo que lá chegar, de contratar o Chico Xavier para psicógrafo particular, só meu _ e a primeira comunicação vai ser dirigida justamente a você. Quero remover todas as tuas dúvidas. Do Lobato

Com esta carta, meio irônica, brincalhona, Lobato despedia-se do amigo Godofredo Rangel, escritor como ele. Doze dias depois, morria durante o sono.
Em seu enterro, os estudantes saíram à rua, agitando faixas sobre a questão do petróleo. E o já consagrado ator Procópio Ferreira, amigo pessoal, fez um discurso onde proclamava:
"Agora, os sem-vergonhas poderão agir à vontade: morreu Monteiro Lobato!"

Taubaté, 1907

Rangel:

Estou noivo. Pedi no dia 12 a obtive a 15 a mão de Purezinha, filha do Dr. Natividade que te examinou em Aritmética no Curso Anexo, minha prima longe, professora complementarista, loura, branca como pétala de magnólia, linda. Combinamos casar um dia."




São Paulo, 17.1.1920
Rangel:

Tens toda e não tens nenhuma razão. Tens-na no meu caso: não sou literato, não pretendo ser, não aspiro a louros acadêmicos, glórias , bobagens. Faço livros e vendo-os porque há mercado para a mercadoria; exatamente o negócio do que faz vassouras e vende-as, do que faz chouriços e vende-os. E timbro em avisar ao leitor de que não sei a língua. Se por acaso algum dia fizer outro livro, hei-de usar letreiros das fitas: "Contos de Monteiro Lobato, com pronomes por Álvaro Guerra; com a sintaxe visada por José Feliciano e a prosódia garantida no tabelião por Eduardo Carlos Pereira. As vírgulas são do insigne virgulógrafo Nunávares, etc."



S. Paulo, 20.2.43
Rangel:

Pois é. Perdi meu segundo filho, o Edgar, um menino de ouro, tal qual o Guilherme. Impossível filhos melhores que os meus, e talvez por isso, foram chamados tão cedo.(...)
Eu não me desespero com mortes porque tenho a morte como alvará de soltura. Solta-nos deste estúpido estado sólido para o gasoso - dá-nos invisibilidade e expansão, exatamente o que acontece ao bloco de gelo que se passa a vapor. (...) E assim vamos também nós morrendo. Morrendo nos filhos, pedaços de nós mesmos que seguem na frente. Morrendo nas tremendas desilusões em que desfecham nossos sonhos."


S. Paulo, 27.10.43
Rangel:
Solto agora as minhas cartas a você, e depois você solta as tuas a mim.
Outra coisa está me parecendo: que na literatura fiquei o que sou por causa dessa correspondência. Se não dispusesse do teu concurso tão aturado, tão paciente e amigo, o provável é que a chamazinha se apagasse. Você me sustentou firme na brecha _ e talvez eu te haja feito o mesmo. Fomos o porretinho um do outro, na longa travessia.



"Escrever é gravar reações psíquicas. O escritor funciona qual antena - e disso vem o valor da literatura. Por meio dela, fixam-se aspectos da alma dum povo, ou pelo menos instantes da vida desse povo." [ Monteiro Lobato ]

"Ele é isso. Corre na frente com o facho, a espantar todos os morcegos e corujas e a semear horizontes." "  [ Monteiro Lobato ] 

"Nada de imitar seja lá quem for. (...) Temos de ser nós mesmos (...) Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir." [ Monteiro Lobato ] 


FONTES DE PESQUISA 

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