Na madrugada em neblina, sua mão
guia-me sob o fraco lumiar dos lampiões que balançam ao vento. A madrugada
gelada vai transformando a nossa respiração em sutis vapores a formar imagens
de nossas tão distantes lembranças... E algo cortante dói em nós, no cair do
sereno. Uma vontade de escorregar pelos trilhos rumo ao passado, em dueto
com as gotículas que escorregam nas vidraças da estação.
Olho em suas mãos e vejo a velha e
judiada mala de velhos guardados, amores não vividos, desejos ainda vivos,
retalhos de entes queridos...
Olho em minhas mãos! Assusto-me ao
perceber que não consegui desfazer-me de nada que me foi precioso um dia...
Está tudo aqui, comigo, dentro de mim a transbordar pelos meus poros. Começo a
vasculhar
a minha bagagem de vastos amores e nefastas dores, minha perdição.
Memórias que jamais se apagam e ainda são guiadas pela sua mão. Todos os
cheiros de viagens nunca esquecidas, um misto de piche dos trilhos e creolina
de lavatórios, mistura-se ao odor de tantas e tantas memórias e pessoas que um
dia passaram pela mesma estação.
Olho para cima e a escuridão observa-me
em silêncio. O frio resfria a minha alma amante, aplacando a minha vontade de
mulher viajante.
Viro-me e vejo o meu pequeno
lugarejo adornado por frágeis luzeiros! Encontro-me mais e mais nele e por ele!
Percebo-me despida de todo o resto! Minhas vestes são a vastidão que vejo!
Visto-me do meu lugar de luzes foscas! Sinto-me queimar no fogo de seus
luzeiros com intensidade! Como nunca antes! A densa neblina espalha mística
sonoridade em boleros de um gramofone ao longe... Talvez seja Barrios, um dos
que estariam na preferência daquele que um dia seria o meu pai! “Amapola”, atemporal
deslizando entre o passado e o futuro... “amapola” vibrando em meu ventre de
buscas e andanças, no incessante carregar de malas da alma. “Amapola” a marcar
os nossos passos ecoando pela plataforma orvalhada.
Sinto-me abraçada pelas costas. É você!
Sempre você! Olhos faiscantes a iluminar cada uma de minhas constantes paradas
na estação. Sob os nossos longos e pesados casacos, cobrimos todos os nossos
segredos, sejam eles de de pele ou de planos, de emoções ou de panos, divinais
ou mundanos. E muito além dos mistérios, acalentamos os nossos sonhos, tanto os
raros como os insanos.
Tudo à nossa volta insiste e converge
para que busquemos o nosso passado. Para que regressemos ao nosso
início. À medida em que aceitamos a viagem, o barulho nos trilhos
vai perdendo a sua força, o apito cessa... E....Desesperados de ansiedade e
ópio, assistimos a parada do trem, e nos arrepiamos no estridente raspar de
suas rodas no metal, a rasgar o tempo e adentrar os espaços. Subimos a
ocupar os nossos assentos, rumo ao passado, até que os lampiões fiquem cada vez
mais apagados atrás de nós...
A música não para! Encantado gramofone
a dispersar Barrios desfeito em magias, na madrugada da estação das almas... E
eu... Desfaço-me sob os seus olhos... Na estação das almas...
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