11/03/2016

ESTAÇÃO DAS ALMAS


Na madrugada em neblina, sua mão guia-me sob o fraco lumiar dos lampiões que balançam ao vento. A madrugada gelada vai transformando a nossa respiração em sutis vapores a formar imagens de nossas tão distantes lembranças... E algo cortante dói em nós, no cair do sereno. Uma vontade de escorregar pelos trilhos rumo ao passado, em dueto com as gotículas que escorregam nas vidraças da estação.
Olho em suas mãos e vejo a velha e judiada mala de velhos guardados, amores não vividos, desejos ainda vivos, retalhos de entes queridos...
Olho em minhas mãos! Assusto-me ao perceber que não consegui desfazer-me de nada que me foi precioso um dia... Está tudo aqui, comigo, dentro de mim a transbordar pelos meus poros. Começo a vasculhar
a minha bagagem de vastos amores e nefastas dores, minha perdição. Memórias que jamais se apagam e ainda são guiadas pela sua mão. Todos os cheiros de viagens nunca esquecidas, um misto de piche dos trilhos e creolina de lavatórios, mistura-se ao odor de tantas e tantas memórias e pessoas que um dia passaram pela mesma estação.
Olho para cima e a escuridão observa-me em silêncio. O frio resfria a minha alma amante, aplacando a minha vontade de mulher viajante.
Viro-me e vejo o meu pequeno lugarejo adornado por frágeis luzeiros! Encontro-me mais e mais nele e por ele! Percebo-me despida de todo o resto! Minhas vestes são a vastidão que vejo! Visto-me do meu lugar de luzes foscas! Sinto-me queimar no fogo de seus luzeiros com intensidade! Como nunca antes! A densa neblina espalha mística sonoridade em boleros de um gramofone ao longe... Talvez seja Barrios, um dos que estariam na preferência daquele que um dia seria o meu pai! “Amapola”, atemporal deslizando entre o passado e o futuro... “amapola” vibrando em meu ventre de buscas e andanças, no incessante carregar de malas da alma. “Amapola” a marcar os nossos passos ecoando pela plataforma orvalhada.
Sinto-me abraçada pelas costas. É você! Sempre você! Olhos faiscantes a iluminar cada uma de minhas constantes paradas na estação. Sob os nossos longos e pesados casacos, cobrimos todos os nossos segredos, sejam eles de de pele ou de planos, de emoções ou de panos, divinais ou mundanos. E muito além dos mistérios, acalentamos os nossos sonhos, tanto os raros como os insanos.
Tudo à nossa volta insiste e converge para que busquemos o nosso passado. Para que regressemos ao nosso início.  À medida em que aceitamos a viagem, o barulho nos trilhos vai perdendo a sua força, o apito cessa... E....Desesperados de ansiedade e ópio, assistimos a parada do trem, e nos arrepiamos no estridente raspar de suas rodas no metal, a rasgar o tempo e adentrar os espaços. Subimos a ocupar os nossos assentos, rumo ao passado, até que os lampiões fiquem cada vez mais apagados atrás de nós...
A música não para! Encantado gramofone a dispersar Barrios desfeito em magias, na madrugada da estação das almas... E eu... Desfaço-me sob os seus olhos... Na estação das almas...


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